25 Feb

O IGP merece respeito

No site do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE), da Fundação Getúlio Vargas, há importantes informações sobre o Índice Geral de Preços (IGP), em suas diferentes modalidades, como o IGP-DI e o IGP-M, que se distinguem apenas pelos períodos de coleta de dados e momento de divulgação, em cada mês, do percentual de inflação apurado.


Divulgado desde 1947, o IGP foi concebido para refletir, em perspectiva abrangente, o movimento dos preços no país. Desde 1950, o indexador resulta da média aritmética ponderada de três outros índices da FGV: o Índice de Preços ao Produtor Amplo (IPA), o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) e o Índice Nacional da Construção Civil (INCC).
Segundo informa o mencionado site, os pesos de cada um desses índices na composição do IGP correspondem a parcelas da despesa interna bruta, calculadas com base nas contas nacionais, assim distribuídas: 60% para o IPA, 30% para o IPC e 10% para o INCC.


Essa modelagem garante ao IGP a condição de autêntico índice geral de preços, com capacidade de medir, em bases contínuas, para divulgações mensais, a oscilação de preços verificada no processo produtivo em desenvolvimento no território nacional, com pesquisa de valores que cobre preços de matérias-primas agrícolas e industriais, de produtos intermediários (semielaborados) e de bens e serviços entregues ao consumidor final.


É fato que nem sempre o IGP serviu de fator de reajuste de prestações pecuniárias. Tendo a correção monetária sido admitida no Brasil em 1964, durante longo tempo só se permitia a indexação de contratos com base na variação da Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN).
Em etapas seguintes, sobrevieram, em substituição à ORTN, primeiro a Obrigação do Tesouro Nacional (OTN), depois o Bônus do Tesouro Nacional (BTN), mantido no país até meados dos anos 90, como o regime de indexador único autorizado por lei para fins de atualização monetária de obrigações.


Naquela década de 90, para enfrentar a hiperinflação então instalada no país de modo renitente, foi editado o Plano Real, programa econômico que, entre outras medidas, inovou, estruturalmente, a disciplina da correção monetária de obrigações contratuais, ao franquear aos particulares o direito de escolher, entre os vários índices disponíveis no mercado, o mais adequado a suas recíprocas conveniências.


A regra chave do novo modelo, ainda hoje em vigor, está na Lei nº 10.192/2001, fruto de conversão da Medida Provisória nªº 1.053/1995, nos seguintes termos:


É admitida estipulação de correção monetária ou de reajuste por índices de preços gerais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção ou dos insumos utilizados nos contratos de prazo de duração igual ou superior a um ano“(artigo 2º).


Desapareceu, assim, naquele momento, a presunção legal da inflação uniforme no país, comum a todos os contratos, apurada por um único fator de correção monetária autorizado em lei para atualização de obrigações.


Em lugar desse regime, instaurou-se a liberdade de escolha entre índices de preços distintos, de tal maneira que cada contrato passou a ter — digamos — a sua “inflação específica”, variável em função do critério de cálculo do percentual de reajuste inerente ao indexador livremente eleito pelas partes.

Em outras palavras: um sistema diferente de correção monetária foi implantado no país, cuja essência reside na concessão aos particulares do direito de escolher o medidor da inflação para seus negócios, a partir de um cardápio de índices de preços, ora de caráter geral, ora setorial, ora pertinente ao custo da produção ou dos insumos relacionados à contratação, podendo distinguir-se, cada qual destes, em função da amplitude da coleta de preços, que conta com abrangências local, regional e nacional, além de diferentes cestas de bens e serviços, entre outras muitas variantes.


Para ilustrar o alcance da mudança resultante dessa opção legislativa, vale comparar a regra do Plano Real, acima reproduzida, com a que prevalecia ao tempo da ORTN, tomando-se como exemplo a Lei nº 6.423/1977, concebida pelo então ministro Mário Henrique Simonsen e que vigorou entre nós, por anos a fio, com o apelido de Lei Simonsen, cujo artigo 1º possuía a seguinte redação:


A correção, em virtude de disposição legal ou estipulação de negócio jurídico, da expressão monetária de obrigação pecuniária somente poderá ter por base a variação nominal da Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN)” (caput).
Considerar-se-á de nenhum efeito a estipulação, na vigência desta Lei, de correção monetária com base em índice diverso da variação nominal da ORTN
” (§3º).


Outro exemplo do antigo regime pode ser encontrado no Decreto-Lei nº 2.283/1986, que instituiu o Plano Cruzado:

A partir da vigência deste decreto-lei, é vedada, sob pena de nulidade, cláusula de reajuste monetário nos contratos de prazos inferiores a um ano. As obrigações e contratos por prazo superior a doze (12) meses poderão ter cláusulas de reajuste, se vinculada a OTN em cruzados” (artigo7º).


Transfigurando o sistema, o Plano Real, como visto, optou pela autonomia da vontade no que tange à correção monetária em negócios privados, passando a admitir, como antecipado, a critério das partes, a estipulação de índices de preços gerais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção ou dos insumos utilizados nos contratos, com abrangência nacional, regional ou local, entre outras variáveis, bastando que se observe, para a sua validade, a periodicidade mínima estabelecida em lei para a aplicação da cláusula de reajuste.

Esse é o regime jurídico da correção monetária de obrigações contratuais atualmente em vigor no país. E, desde a década de 90 do século 20, o IGP sagrou-se como indexador plenamente confiável para medir a inflação, em especial por sua imunidade contra manipulações de governo.


A propósito, lembre-se que, na fase da luta contra a hiperinflação, nos anos 1980 e 1990, os índices de correção monetária editados por órgãos públicos tiveram sua confiabilidade seriamente comprometida, com milhares de demandas judiciais instauradas para questionar expurgos inflacionários. Sobre essa dura quadra da vida nacional, rememore-se, por todos, o momento inaugural do Plano Verão, com a divulgação pelo IBGE de um IPC de janeiro de 1989 com 51 dias, para reduzir a inflação de fevereiro, que foi calculada com base em apenas 20 dias.

O fato, porém, é que, desde que admitido como indexador de obrigações contratuais, a partir do Plano Real, há mais de 25 anos, portanto, o IGP da FGV tem gozado de inabalável prestígio junto à comunidade empresarial, a qual, inclusive, foi a principal responsável pela criação do IGP-M, índice estruturado nas mesmas bases do IGP-DI, apenas para adequar a data de divulgação de resultados à agenda de negócios.

Pois bem. Sem desviar-se de suas diretrizes quase octogenárias e procedendo à usual coleta de preços com ponderação de índices, conforme acima exposto, o IGP capturou, a partir do último quadrimestre de 2020, percentuais elevados de inflação, considerados períodos acumulados de 12 meses.

Segundo notícias de jornal, o fenômeno é atribuído, ao menos em parte, ao aumento do dólar em 2020 e respectivo impacto no cálculo do IPA — o já citado Índice de Preços ao Produtor Amplo, que compõe o IGP —, em função do aumento de preço, em reais, de materiais e equipamentos importados com cotação na moeda norte-americana.

Tendo o evento coincidido com o período da pandemia, que produziu consequências na economia com diferentes causas, sabe-se que, no universo contratual, as partes já vinham — antes, durante e depois do referido quadrimestre — vivenciando processos diversos de renegociação e repactuação de obrigações, sendo esse o ambiente que impera, caso a caso, para os inumeráveis negócios hoje em curso no país.

Relações contratuais menos saudáveis, contudo, têm levado devedores a judicializar o IGP, quer para reivindicar, pura e simplesmente, a sua não incidência na data prevista em contrato, quer para pleitear a sua substituição por outro indexador, como o IPCA do IBGE, batizado por alguns de “inflação oficial” brasileira, por constituir o índice relacionado à meta de inflação traçada pela política econômica (Resolução Bacen nº 2.615 de 30/06/1999).

Sobre esse batismo, cumpre salientar seu significado exclusivamente econômico, sem correspondência no mundo jurídico. Trata-se, com efeito, de jargão do economês, para identificar o fator utilizado pelo governo na aferição de sua política de metas inflacionárias. No que toca a contratos, como já demonstrado, inexiste no Brasil uma “inflação oficial”, se entendida como aquela apurada nos tempos da ORTN ou da OTN, já que hoje as partes são livres para escolher seu índice de preços preferido, com base no cardápio anteriormente comentado.

Efetivamente, quando elege o IGP para indexar obrigações contratuais, o particular assim o faz no exercício da autonomia da vontade assegurada em lei, escolhendo, livremente, um índice geral de preços, com o propósito de resguardar o valor de sua obrigação da inflação apurada no processo produtivo nacional.


Por certo, se, exemplificativamente, em lugar do IGP, preferisse um indexador com abrangência menor, que capturasse apenas a variação de preços de um setor específico da economia, teria o particular, então, contratado outro índice, como, conforme o caso, o INCC/FGV, focado nos custos da construção civil, ou o próprio IPCA/IBGE, cuja pesquisa é centrada na oscilação de preços em função dos hábitos de consumo de famílias com renda de até 33 salários mínimos e residência nas principais capitais e zonas metropolitanas brasileiras.

Todavia, não há sentido econômico ou jurídico em pleitos de substituição do IGP por outro índice durante a execução de um contrato, por inconformismo com seus resultados no período aqui citado, já que a inflação nele detectada está correta, consideradas as inalteradas características do indexador desde 1950.

Ademais, se comparado com o IPCA, conforme desejo de alguns, note-se que nos últimos anos os respectivos indicadores de inflação tiveram crescimentos similares, apesar da maior volatilidade do IGP, que chegou a apresentar percentuais negativos de reajustes anuais no histórico de aplicação da cláusula. Entre junho de 2017 e fevereiro de 2018, por exemplo, obrigações sujeitas à correção monetária anual pelo IGP tiveram seus valores inalterados por 24 meses, a despeito da alta de insumos e preços no período, detectada, inclusive, pelo IPCA.

Acresce que diversos analistas financeiros destacam que as variações mais representativas do IGP no período acima apontado tendem a ser compensadas no médio prazo, uma vez que a inflação verificada se irradiará para os demais índices da economia (salvo expurgos indevidos), já se podendo antever que, se rodado o filme para adiante no tempo, logo logo os que agora pedem para substituir o IGP pelo IPCA estarão de volta ao Judiciário para clamar pela substituição do IPCA pelo IGP, ou por algum outro índice que, na ocasião, melhor atenda a seus propósitos unilaterais.

Seja como for, o fato é que, com a notoriedade de que o IGP capta, de forma ampla, os preços da economia real, quem estipula tal índice em contrato não pode, depois, insurgir-se contra a eventual influência do dólar no percentual de reajuste apurado, ou, ainda ilustrativamente, pretender furtar-se às consequências de um “tarifaço”, sabendo-se que os preços públicos estão presentes no indexador, via IPC/FGV.

Toda essa reflexão nos remete à jurisprudência reiterada dos tribunais no sentido de que a inflação, assim como a recessão ou a desvalorização monetária, entre outros eventos recorrentes na vida econômica nacional, não constituem hipóteses capazes de suscitar a aplicação da teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva, em qualquer de suas feições (v.g., artigos 317 ou 478 a 480 do Código Civil), quer para afastar a incidência do IGP, quer para justificar a sua substituição, por ordem judicial. Veja-se, a propósito, interessante trecho de acórdão sobre o assunto:


“(…) 3 — Fatos como mudança de padrão monetário (RT 634/83); inflação (RT 388/134; RT 655/151; RT 659/141; RT 654/157; RT 643/87); recessão econômica (RT 707/102; RT 697/125); planos econômicos (RT 788/271); aumento do déficit público; majoração ou minoração de alíquotas; variação de taxas cambiais e desvalorizações monetárias não podem ser considerados imprevisíveis no Brasil” (TJ-PE — AC: 4656955 PE, Data de Publicação: 18/9/2019).


Na mesma linha, confira-se a seguinte passagem de precedente do Superior Tribunal de Justiça:

“(…) 5. Não se mostra razoável o entendimento de que a inflação possa ser tomada, no Brasil, como álea extraordinária, de modo a possibilitar algum desequilíbrio na equação econômica do contrato, como há muito afirma a jurisprudência do STJ (…)” (REsp nº 744.446/DF. Rel. min. Humberto Martins, 2ª Turma, DJe 05.05.2008).

Oportuno mencionar que, sem prejuízo de poder ser pactuado em quaisquer contratos, já que a lei não exige pertinência temática entre o objeto da obrigação e o indexador eleito, o IGP tem reconhecida aptidão para corrigir monetariamente obrigações inerentes à atividade empresarial, tendo o Supremo Tribunal Federal assentado essa premissa, ao declarar que dito índice espelha “a variação de preços do setor empresarial brasileiro” (cf. RE 376.846-8/SC).

Aliás, especialmente no que concerne a relações entre empresários, a apreciação do tema ora proposto não pode desconsiderar o rol de princípios recentemente incorporado ao direito brasileiro pela Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), quando altera o Código Civil para estabelecer que:


Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual“(nova redação do artigo 421, parágrafo único); e “os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (…) a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada” (novo artigo 421-A, inciso III).

Enfim, por esses e outros muitos fundamentos, inclusive de índole constitucional, uma vez estipulado o IGP em contrato, em qualquer de suas modalidades (IGP-DI, IGP-M ou IGP-10), deve a respectiva cláusula ser respeitada, tanto pelas partes contratantes, como pelo Poder Judiciário.

José-Ricardo Pereira Lira é advogado do escritório Lobo e Lira, presidente da Comissão de Direito Urbanístico e Imobiliário da OAB-RJ e diretor no Rio de Janeiro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim).